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Existe um aeroporto no meio da maior cidade da América do Sul

 

Sob o balé sincronizado de pousos e decolagens, São Paulo engole Congonhas

A cabeceira de Congonhas é colada na avenida Washington Luís. Muita gente gosta de parar ali para ver os aviões pousando de perto. O barulho é impressionante.

Numa manhã chuvosa de sábado, dona Ivanilde parou por ali. Ela veio de Santo André buscar o marido no aeroporto. Com ela, o filho e o neto. “É lindo. Fico encantada com essas coisas”, ela diz. No horizonte, as luzes de um avião se aproximam.

“Eu vim buscar meu marido. Ele veio de Porto Alegre, né? Agora, para quem mora aqui… Não deve ser fácil”, diz dona Ivanilde. O avião e suas luzes estão cada vez mais perto.

“Como eu te falei, eu vim trazer meu marido na… terça-feira, que ele foi viajar”, ela explica. “Nossa”, ela diz – subindo o tom de voz. “É de dois em dois minutos ou um em…”, mas não completa a frase. Um avião de passageiros urra sobre sua cabeça e some atrás do tapete quadriculado branco e laranja que esconde a pista.

“Aaaaiii, que coisa lindaa…”, vibra ela.

– Congonhas

Desde 1936 é assim. A inauguração do aeroporto aconteceu um ano depois da escolha do local. À época, Congonhas era uma alternativa longe do centro, com boa visibilidade e que não sofria com as cheias do Tietê. Volta e meia, os alagamentos fechavam o Campo de Marte e deixavam São Paulo sem ter como receber avião.

Aos poucos, Congonhas foi crescendo. Em 1970, já eram 350 pousos e decolagens por dia. Eles movimentavam cerca de 12 mil passageiros. Os dados são da Infraero.

Mesmo com a inauguração de Guarulhos em 1986, Congonhas não parou de crescer. Em 1990, se tornou o aeroporto mais movimentado do país. O local recebe hoje mais de 550 voos por dia e uma movimentação de cerca de 15 milhões de passageiros. Mas São Paulo engoliu Congonhas.

Do outro lado da rua, há apartamentos, bancos, casas lotéricas, hoteis, restaurantes e até anúncios de imóveis próximos à venda e para aluguel. E, sobre os carros que cortam a Washington Luís, segue o balé sincronizado de pousos e decolagens.

– Transtorno

A Associação Brasileira para a Qualidade Acústica (ProAcústica) adverte: se expor a ambientes com intensidade sonora superior a 85 decibeis faz mal à saúde. Mas, quando se vive numa grande cidade, isso é o que mais acontece.

Dentro de um ônibus, por exemplo, a barulheira pode chegar a 95 decibeis. Nas proximidades de Congonhas, bate até 85. E o problema é ainda pior perto da pista, onde os ruídos podem chegar a 104 decibeis.

“Numa cidade, nada se compara ao ruído de aviões”, afirma Edison Moraes. Ele é um dos diretores da ProAcústcia.

“Aeroportos como o de Congonhas, o da Pampulha e outros próximos ao centro são verdadeiros transtornos”, diz ele.”O ruído gerado não tem para onde sair e vai batendo nas paredes. Isso aumenta a sua intensidade e permanência”, Edison explica.

Viver exposto a tanto barulho tem as suas consequências. “Trata-se de uma perda auditiva que vai aumentando homeopaticamente”, conta Edison. E não é só o ouvido que sofre com o ruído.

A longo prazo, a barulheira traz consigo problemas como irritabilidade e perda de concentração. Segundo Edison, a blindagem acústica é uma das poucas formas de se defender. Mas não é barata.

Na internet, há modelos de janelas antirruído à venda por mais de 2.500 reais. “O governo deveria proporcionar janelas antirruído para quem mora perto de aeroporto. Senão em toda residência, pelo menos nos quartos”, defende o presidente da Associação dos Moradores do Entorno, Edwaldo Sarmento.

Da varanda de casa, Edwaldo vê os aviões decolando. E já se acostumou a conviver com o barulho. “O aeroporto estava aí, não é? Nós é que viemos para cá”, diz, conformado.

“A nossa luta é para que o aeroporto feche às 22h, o que não conseguimos, né? E entendemos que ele deva abrir às 7h”, ele explica. “A gente conseguiu fechar ele efetivamente às 23h. E conseguiu fazer com que ele abra às 6h. A gente queria 7h, mas chegou nesse meio-termo. Foi o que conseguimos”, afirma Edwaldo.

O paranaense de 63 anos mora na região há 30. Ele se orgulha de suas 400 horas de estudo sobre aeroportos perdidos no meio de grandes metrópoles. Esse é o caso não só de Congonhas, mas de outros – como Heathrow(Londres) e Tegel (Berlim).

Vistos no mapa, são espaços em branco. Ruídos na paisagem urbana. Lugares em que o vai e vem dos aviões já se tornou trilha sonora para a vida de milhares de pessoas.

– 3054
O voo 3054 da TAM partiu de Porto Alegre em 17 de julho de 2007. Às 17h19, o Airbus A320 prefixo PR-MBK decolou em direção a Congonhas. Ao pousarem no aeroporto às 18h54, piloto e co-piloto não conseguiram desacelerar. Eles perderam o controle da aeronave.

O avião percorreu toda a pista. Saiu dela lateralmente. Sobrevoou a Washington Luís. E se chocou contra um posto de gasolina e um prédio da TAM – localizados nas cordenadas 23°37’11″S e 046°39’44″W.

Todos os seis tripulantes e 181 passageiros morreram, além de 12 pessoas que estava no edifício. Os dados constam no relatório final do acidente, divulgado pelo Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) em 2009.

De todos os ruídos, talvez esse seja o que mais reverbera até hoje em Congonhas.

“Eu estava na Escola Superior de Guerra fazendo um curso”, conta Edwaldo. “Aí, me ligaram. Foi até minha esposa que me ligou. Ela disse que deu um clarão e aí caiu. A minha filha que está aqui trabalhava na Localiza, diz ele. A loja de aluguel ficava perto dos prédios atingidos. “A gente ficou muito preocupado, aquele negócio todo. Morreram dois amigos meus lá”, conta Edwaldo.

No local do acidente, existe um memorial. É uma praça vazia, com várias estacas de concreto enterradas no chão. Numa manhã de sábado, dividem espaço no local crianças e skatistas do bairro.

– Surdos
“De todos os telhados aqui, quando chove, desce uma fuligem escura. Essa fuligem provoca problemas pulmonares nas pessoas de mais idade. As casas são uma imundície total, você não consegue mantê-las limpas. Na calçada, é aquele betume. Isso é o que você respira”, afirma Edwaldo. A fuligem é gerada pela queima do querosene que abastece os aviões.

Sobre o ruído, Edwaldo tem uma teoria interessante. Diz que com tanto barulho, as pessoas são obrigadas a se falar olhando nos olhos. E que isso faz bem para o caráter.

“Hoje, nós somos educados para ser surdos”, diz ele.


Por: Saulo Guimarães
Saulo é carioca, jornalista e sente uma ligeira saudade do aeroporto Santos Dummont.
Texto publicado no site Quiprocó, uma revista de ideias sobre como é a vida nas grandes cidades.

 

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